"A NOSSA LINGUAGEM CRIA O MUNDO."

sábado, 17 de julho de 2010

NARRATIVA DE CAPITU


"Só agora, ocorrido tanto tempo humano, posso, finalmente, contestar as acusações contra mim feitas pelo meu ex-marido, o Dr. Bento Santiago. E fazê-lo, porque, nestas paragens que ora habito, aprendi, com meu irmão Brás Cubas, as artes da narrativa além-tumular. Ficamos amigos, ele, eu e o senhor Quincas Borba, o filósofo, um homem extraordinário, não tão louco como alguns pensam e escreveram. Afinal, somos criaturas da mesma pessoa, diante de quem, confesso, fico dividida, talvez por força da ambigüidade do seu texto: ao mesmo tempo que o admiro, há um lado meu que rejeita. Ele é o grande responsável por tudo o que me aconteceu. Devo-lhe minhas tristezas, minhas alegrias; devo-lhe a fama que, modéstia à parte, acabei granjeando. Mas a ele coube também a construção da imagem negativa que me foi atribuida. A ele e, a bem da verdade, a uns tantos críticos que se debruçaram sobre a minha história; alguns dentre eles me tiveram por frívola, outros, felizmente, nunca aceitaram a palavra do filho de D. Glória. Sou-lhes grata, ao fim e ao cabo, do fundo do meu coração.
Não guardo rancor do meu ex-marido. Nunca abriguei em mim tal sentimento. Nem mesmo quando fingia que me havia visitado nas suas viagens à Europa. Ele precisava disso. Apenas lamento o seu equívoco e a sua incapacidade de se comunicar. E, onde quer que ele esteja que nunca o encontrei por aqui, se souber desta minha narrativa, por certo, ao lê-la, poderá cuidar até, quem sabe, que a obra é dele. Não me importo. O texto é a morte do autor. Eu e você sabemos quem escreveu o livro. É o que conta."



In: Capitu Memórias Póstumas - Domício Proença Filho

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