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sábado, 17 de julho de 2010

DOM CASMURRO

Nos trechos a seguir podemos verificar a bisbilhotice do narrador, ele conversa com o leitor em situação bem humorada, levando a reflexão e até mesmo a digressões, ou seja, o leitor é convidado a participar da obra, pois o narrador deixa em aberto para que haja a colaboração de quem o lê. Machado de Assis, realista, adianta características referentes ao movimento modernista.
“(...) Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.”

“Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. (...)”

“Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante. (...)”

“Abane a cabeça, leitor, faça todos os gestos de incredulidade. Deixe a deitar fora este livro, se o tédio já no não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se não o fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor. (...)”

A crítica de Machado é mascarada pelo humor negro, pela ironia, pela interpretação além do explicito, pois, sua criticidade é marcada pela ironia, podendo ser até mesmo sarcástico.

“A casa era a da Rua Matacavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.”

Nesse trecho Machado ironiza as atitudes de pessoas que fazem algo para agradar o outro, que se preocupam mais com a opinião alheia do que com a própria vontade.

A narrativa segue uma ordem cronológica levando em conta a memória do narrador, pois a medida que as lembranças surgem são inseridas na história.Vejamos trechos, para que verifiquemos a veracidade da afirmação acima descrita:
“Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar a Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada.”

“Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.”
Bentinho em sua paranóia e seu sentimento obsessivo de que estava sendo traído, descreve todos seus sentimentos perturbados. Ele faz de pequenos detalhes uma tempestade em copo d’água, talvez por ter tido uma infância com várias falhas. A falta da figura paterna, por exemplo, e também a pressão da mãe para que ele fosse para o seminário. Sendo assim, não ter ao foi preparado para um relacionamento amoroso.

A narração lenta nos mostra o apego ao passado que o Dom Casmurro tinha com o tempo que ele relembra em sua narração. Encontramos uma citação no livro que mostra o pensamento freudiano em relação ao relacionamento com os pais, que de fato, é o canal infantil por excelência por onde flui de volta a libido ao encontrar obstáculos na vida posterior e por meio do qual revive conteúdos psíquicos da infância, já de há muito esquecidos.
"... Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mais ainda da idéia de ambos . Não me lembra nada dele , a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos , que me acompanham para todos os lados , efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas , a cara é toda rapada , salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos , e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido... Se padeceram moléstias , não sei , como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido".

A escritura de Dom Casmurro retoma, por sua vez, a linha temática de Otelo - amor, casamento, traição. No romance, surge um novo Otelo que, de posse da palavra, conta ao leitor o seu idílio de adolescência que, apesar das dificuldades, evolui até o casamento, quando se julga traído e resolve vingar-se da mulher (Capitu) e do filho (Ezequiel), que supõe não ser seu, enviando-os para a Europa, onde morrem. Dom Casmurro é Otelo metamorfoseado, que maldiz Desdêmona e apresenta a punição aplicada à mulher e ao filho como sendo justa. O gesto intertextual de Machado repete, de maneira inovadora, o passado no presente, dando continuidade ao eco trágico. Pode-se dizer, portanto, que se ouvem, em Dom Casmurro, ecos de Otelo que ressoam aqui e ali, em novo tom.

Na escritura de Dom Casmurro, a obra fonte, ao ser recontextualizada, ajusta-se à realidade nacional. A síntese bitextual origina um novo texto que veicula, metaforicamente, a crítica às convenções sociais, vigentes no período de transição da Monarquia para a República. O discurso machadiano, tecendo pelo avesso a História, lanceta a aparência bem composta do mundo aristocrático e desvela, na sua estrutura mais profunda, o lado fútil, opressor e injusto da classe dominante, dedicada a manter o poder patriarcal e seu absolutismo.

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