"A NOSSA LINGUAGEM CRIA O MUNDO."

segunda-feira, 4 de julho de 2011

CURTA NADA A DECLARAR - GUSTAVO ACIOLI


Jornalista:
Eu queria que você começasse definindo a si mesmo.

Artista:
Eu sou um sonhador. Acima de tudo, um sonhador. Todas as vezes que fui feliz na vida, foi quando eu me permiti sonhar, delirar, inventar as coisas. Sonhar com um mundo melhor, com um país melhor... Imaginar como vai ser quando tudo for diferente, quando eu tiver conseguido realizar meus sonhos. Me imagino dando entrevista, explicando, contando como tudo aconteceu. O sonho, ele te empolga. Você começa a acreditar naquilo, te dá uma coragem, uma força. Agora, toda vez que eu tentei me adequar à realidade, eu fui extremamente infeliz, sabe. Você começa a pensar nas dificuldades, em tudo que pode dar errado... é a sabedoria dos medíocres. A segurança, o bom senso. Você não pode ousar, tentar fazer diferente. Quando você depende do reconhecimento alheio é uma merda, porque você não pode simplesmente existir, a sociedade é que tem que dizer que você merece existir e ser feliz! E é nisso aí que os medíocres dominam, porque eles são a maioria. Então, isso aqui virou o Império da Mediocridade. Bom é ser igual! Bom é ser ruim! É por isso que rapidamente o sujeito tem que ser capaz de desenvolver um certo cinismo pra poder sobreviver. O cinismo é como uma vacina. Na vacina, a pessoa é infectada por um vírus inócuo pra desenvolver a imunidade contra o vírus de verdade. O cinismo é assim: você fica meio acanalhado pra poder não adoecer no contato com a canalhice. O sujeito chega aos 30 anos e já é um amargurado, pelo simples fato de ser brasileiro. Porque ele vive numa realidade que é antibiótica, massacrante.

Jornalista:
Mas você não acha que as coisas podem melhorar?

Artista:
Olha, as chances das coisas melhorarem são, no máximo, iguais às chances das coisas piorarem. O problema é que a gente vive numa merda tão grande que as pessoas precisam se agarrar a uma esperança, acreditar em alguma coisa, pra não se matar, ou pra não entrar em depressão profunda. A religião, por exemplo, é um antidepressivo igual a esses remédios que dão aí pros malucos, que o cara fica todo bobo: Jesus... Jesus... Acaba com o cérebro do sujeito. Passa a ter só vida funcional: acorda todo dia de manhã, pega o ônibus, vai pro trabalho... No trabalho ele só tem que fazer operações básicas, tá tudo nas cartilhas, nos manuais, ninguém precisa inventar nada, porque os gringos já pensam em tudo por nós, é só copiar o que eles fazem. É só traduzir mal traduzido os manuais que vêm de lá. É tudo assim. A novela, toda essa babaquice da TV, é tudo antidepressivo. É tudo droga, tudo tem efeito psíquico. Daí tem a dose de jornalismo que é pra dar aquele choque pra dose de novela que vem depois fazer mais efeito. E é aquele jornalismo de merda, né. O cara tá ali sério, compenetrado, querendo se informar pra saber das coisas e tá sendo feito de palhaço, de otário, sendo manipulado, imbecilizado do mesmo jeito. É o imbecil bem informado. Tudo é entorpecente. Marx dizia mais ou menos isso, só que ele nunca poderia imaginar que o próprio marxismo seria o ópio de muita gente também. Eu fumo só de sacanagem. Nego fica dizendo: quem fuma é isso, quem fuma é aquilo. Vá se fudê! É um fascismo do caralho, porra!

Jornalista:
Você não acha que esse teu discurso não leva ninguém a lugar nenhum?

Artista:
Que discurso?

Jornalista:
Isso que você tava falando antes.

Artista:
Acho. É verdade, acho sim.

Filho:
Pai! Você tá demorando muito pra gente ir pra piscina.

Artista:
Ô, filho! Já tô indo, tá? O papai tá trabalhando. Já tô indo. Vai lá com a mamãe que eu já vou. Esse aí eu botei na Lei de Incentivo à Cultura. É sério! Eu fiz um projeto de documentário pra acompanhar o crescimento dele e aprovei no ministério. É sério!

Jornalista:
E como é que todas essas questões que te tocam tanto, que te deixam assim tão exaltado, afetam o teu trabalho de artista?

Artista:
Agora eu tô passando por uma crise muito grande, sabe. Mas não é crise de criatividade. É crise temática. Eu não tenho nada pra dizer... Porra, eu sou homem, heterossexual, branco, tenho grana... Eu vou falar do quê? Eu penso muito nisso. De amor? Amor é o caralho! Daí, você vai dizer: mas você é brasileiro, já não basta? Eu sei, eu ando pelas ruas. Eu vejo TV, porra! Eu vejo uma criança na rua pedindo dinheiro, isso me comove, me revolta. Mas, daí, eu vou falar o quê? Isso tá errado, isso não pode, isso me deixa triste? Vou xingar o presidente, deus e o mundo? Tá entendendo? Eu vejo o sofrimento, mas eu, particularmente, não sofro. E eu acho uma pretensão muito grande falar em nome dos pobres, falar em nome dos outros. É aquela história dos intelectuais dos anos 60, né, Cinema Novo! Falar em nome do povo. Falar pro povo as coisas que ele tem que saber pra se libertar. É ridículo! Os pobres, os discriminados, os oprimidos sabem dizer sozinhos, sabem se expressar sozinhos, não precisam da arrogância de um cara branco e bem alimentado como eu. E digo mais: estão achando suas próprias soluções, independentemente do Estado, dessa imprensa calhorda e dos intelectuais. Então, pra quem é representante de uma classe falida, como eu, representante de um projeto falido, o que me resta é observar o povo. E olha aqui a contradição, ó. O intelectual brasileiro, os ricos deste país, dizem o povo, quando, na verdade, tão se referindo só aos pobres. Tá vendo? Eu mesmo acabei de cometer esse ato falho agora. Quer dizer, não existe um Povo Brasileiro do qual todos fazem parte. Povo são os pobres. Os ricos são outra coisa. Então, eu não vou falar de fome, porque eu não sei o que é fome. Falar em nome dos que têm fome? Eu considero um desrespeito, uma afronta, eu falar de fome pra quem tem fome, ou em nome dos que têm fome. Eu não vou falar de revolta com a polícia, porque a polícia não me pára, não me revista, não me bate. Quando um policial tem que falar comigo, ele me chama de doutor, entendeu? Então, eu tenho é que ficar na minha, e ver se acho alguma coisa boa pra dizer. Por enquanto, eu ainda não achei nada. E quem não tem nada pra dizer tem mais é que ficar calado. Quer um queijo? Não?

Jornalista:
Bom... Obrigada. Foi ótimo ter você aqui.

Um comentário:

  1. Isso é sensacional!
    Descobri esse curta através do som de um grupo de rap aqui do RJ (https://www.youtube.com/watch?v=XgzypknurdU). Acabei vindo parar aqui e estou gostando bastante do blog. Adoro essa atmosfera solitária que os blogs tem. É como se fosse uma dimensão escondida no meio dessa caralhada de redes sociais e pessoas chatas.

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