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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

DESEJO E PERIGO

 
FICÇÃO: UM RETRATO HISTÓRICO
 
Ainda nos dias atuais a China sofre com os impactos sofridos pela invasão do Japão em 1937, eles guardam grandes mágoas e ressentimentos, até mesmo reclamam do pedido de desculpas que o Japão não manifestou.
A segunda maior economia do mundo, a China, é comandada pelo Partido Comunista da China, ou seja, um partido único totalitário, que dita as regras no maior país da Ásia Oriental.
O pensador russo Mikhail Bakhtin mostra-nos o texto como um diálogo sociocultural conduzido pelo texto. Nenhum texto surge do nada, ele é embasado por situações sociais da época em que foi escrita e, também, pela época em que está sendo lida.
Sabemos que muitos diretores escolhem produzir um filme de época para falar do próprio presente, até mesmo para fugir da censura. Ang Lee, um diretor chinês, que ficou em evidencia com as produções americanas, como “Hulk” e "O Segredo de Brokeback Mountain", volta ao seu país de origem para tratar de questões que construíram a história da China e que evidentemente refletem na vida contemporânea dos chineses que vivem suas vidas sem realmente pensarem em como chegaram à situação atual do país.
Para levantar essas questões Lee relata que sua intenção era produzir um filme para que as novas gerações que não viveram sofrimentos políticos passados pudessem entender um pouco da história de suas origens. Logo, entendendo o passado podemos compreender o presente.
A obra que ilustra tudo isso é “Desejo e Perigo”, uma adaptação da obra literária “Se, jie”, de Eileen Chang, uma escritora muito popular na comunidade sino-americana. A autora do livro, que levou mais de 30 anos para finalizar a obra, tem muito em comum com a obra, já que viveu na China ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, foi casada com um colaborador do governo japonês, sofreu com a infidelidade do marido e interrompeu seus estudos na Universidade de Hong Kong para voltar a Xangai, temas vistos em seu livro. Afinal, para produzirmos arte é necessário buscarmos inspiração para na vida, sendo na que vivemos ou na qual observamos.
Diante desses embates “Desejo e Perigo” narra a história de Xangai ocupada pelos japoneses, por meio de estudantes universitários, que iniciam a obra como artistas e acabam como revolucionários, coisas não muito distantes, já que a arte é usada como meio de protesto, manifestação do descontentamento tanto da alma quanto do contexto sociocultural. Não é por acaso que as efervescências artísticas ocorrem em períodos difíceis, como os tempos de guerra.
Os chineses foram bombardeados cruelmente pelos japoneses, sofriam de todas as maneiras, faltavam-lhes produtos, saques nos bancos eram controlados, entre mortos e feridos.
É nesse contexto que o filme de Lee trabalha na luta de jovens estudantes que se inicia em 1939, dois anos depois da ocupação e percorre até 1942. Demos atenção a jovem Wong, que de garota tímida, deixada pelo pai que vai para a Inglaterra e órfã de sua mãe transforma-se em um exemplo de femme fatale, típica do cinema noir, que segundo o crítico francês Nino Frank (1946) trata-se de filmes densos, escuros, surgido em meados dos anos 1940, época da grande depressão nos Estados Unidos. Fazem parte do estilo filmes policiais que se passam em um mundo cínico e antipático, outros derivados dos romances de suspense da época, ficção policial e detetive. A femme fatale é uma mulher poderosa que vive nessa atmosfera e surge para destruir o homem.
Wong tem a missão de destruir um colaborador do governo japonês, um homem frio, cuja profissão é matar. Ela aceita a missão depois de atuar em uma peça e ter seu momento epifanico quando toda a platéia interage com sua personagem em um coro que diz “A China não sucumbirá”. Tomada por essa euforia de poder transformar a situação horrenda em que vivem, contribuindo de algum modo para vingar-se de um inimigo, ela aceita entrar para um grupo de revolucionários amadores, que de inicio têm o plano frustrado, mas que após três anos juntam-se novamente, agora com auxilio de um grupo da resistência. A garota que diz estar vivendo três anos de vazio interior aceita fazer uma nova tentativa e infiltra-se novamente à família do Sr. Yee, o colaboracionista em foco.
Tornando-se amiga da esposa de seu inimigo ela passa os dias jogando majong, cenas que expressam a tensão de Wong e também do período em que vivem.
  
O RETRATO FEMININO NA HISTÓRIA
 
Tratemos da figura feminina nesse contexto, representada por Wong, que mesmo sendo obrigada a transformar-se em uma mulher forte e racional passa por momentos em que a guerra deixa de ser da China contra o Japão e passa a ser a guerra dos sexos, o homem contra a mulher.
A mulher reprimida e inferiorizada na sociedade é representada nas artes, em um diálogo entre textos, ou seja, uma conversa entre épocas, onde se muda a roupagem, mas continuam os mesmos conceitos da sociedade patriarcal.
Por meio dos estudos culturais, onde as analises vão desde o pós-coloniais às opressões culturais, incluindo os estudos sobre gênero, diferenças, feminismo, machismo, homossexualidade, teorias marxistas sociais, crítica das práticas tradicionais da política, da antropologia, da literatura e da estética, implicações de temas como o utilitarismo, o estruturalismo, o culturalismo, as culturas populares, as metaficções, o pós-modernismo, vamos discutir a representação da mulher na tela do cinema. É sabido a que imagem estética feminina sempre criou um mundo cruel para a mulher, onde ela se submete a sacrifícios para agradar uma sociedade masculina.
Para se aproximar de Yee, Wong muda a sua aparência natural, tornando-se mais atraente no ponto de vista social, representando a exigência que a mulher é imposta de criar uma imagem padronizada de beleza, pois assim será possível atrair o homem que também se rende a mulher produzida em série, como embalagens de produtos em prateleiras de supermercados.  
A garota que até então era virgem deve tornar-se experiente sexualmente para saciar os desejos sexuais do inimigo. Nesse contexto podemos observar que o amor pela causa torna-se maior do que o amor próprio, desrespeitando o próprio corpo pelo desejo de vingança.
São nas cenas de sexo que Wong surge de uma maneira omissa ao desejo masculino. As cenas representam não apenas a violência sexual imposta pelo sujeito que impõe sua presença, mas também metaforicamente os outros contextos em que a mulher é exposta a inferioridade perante o homem.
Mesmo quando Wong está sendo violentada ela permanece sem voz. O silêncio da personagem mostra-nos o silêncio que as mulheres foram forçadas a viver durante séculos na história. Para que a mulher fosse considerada uma boa esposa, seu maior papel na sociedade, era necessário que ela fosse omissa. A mulher que não seguisse esse padrão era forçada a se calar. A boa esposa era aquela que vivia silenciada pela opressão. Mesmo estando viva e sentindo vontade de gritar era obrigada a permanecer no silêncio. Lee representa isso na tela na figura da amante que mesmo planejando a morte do individuo aparece em muitos momentos calada por ele.
No Ocidente a mulher sofreu muito com a imposição masculina e ainda sofre, mas no Oriente as conquistas femininas foram menores e a representação de Wong não se limita apenas a uma ilustração do passado, mas sim um reflexo do mundo patriarcal em que ainda é possível observar.
Podemos citar o que Cristiane Busato Smith, diz em seu artigo, “O lugar do corpo feminino na comédia musical dos anos cinqüenta:  
 
“É senso comum afirmar que a indústria do cinema é um locus propício para o voyeurismo masculino. Assim, filmes de gêneros diversos cumprem o importante papel de re-presentar os desejos, os fetiches e as fantasias masculinas, uma vez que a mulher, invariavelmente, figura como objeto.” (p.01)  
 
A figura feminina na obra cinematográfica em debate desempenha, justamente, o papel de objeto, ela está ali apenas representando os desejos, os fetiches e as fantasias de um homem frio e autoritário.
Essa ideia de objeto, ainda pode ser tratada a partir do que Laura Mulvey, nos diz no artigo "Prazer visual e cinema narrativo", onde o masculino projeta sua fantasia na figura feminina e a mulher é exibida na tela emitindo um impacto erótico, ou seja, está ali para ser olhada. Ela desempenha o papel de congelar a narrativa, provocando o fascínio do espectador, por meio do prazer que ele sente em usar outra pessoa como objeto de estimulo sexual através do olhar.
Wong representa a mulher contemporânea que transita entre a independência e as raízes conservadoras da sociedade patriarcal. A mulher da atualidade trabalha fora, mas deve conservar o padrão de mantenedora do lar. A personagem de Lee é uma estrategista que deve trabalhar em beneficio de um bem maior, mas demonstra-se fragilizada em alguns momentos entregando-se aos sentimentos.
Entregar-se aos sentimentos nem sempre é uma escolha inteligente, pois o sujeito torna-se vulnerável. O amor é paradoxal, já que tem o mesmo poder para construir e destruir.
A mulher como figura/imagem dialoga constantemente com a história da humanidade, aonde a mulher vem sendo vulgarizada e diminuída perto da imagem masculina. Wong se entrega aos sentimentos, enquanto Yee permanece agindo friamente. Isso também é uma maneira de representar a inferioridade da mulher que não consegue ser racional, mostrando uma mulher que não pode ser confiável em assuntos importantes, como os políticos, já que os sentimentos podem atrapalhar algumas decisões que não podem ser emotivas.
Mas será que esse pensamento é realmente correto? Se Yee tivesse dado vazão aos sentimentos o percurso poderia ter sido outro e destinos poderiam ter sido alterados. Porém, a masculinidade deve ser expressada por um personagem solitário, angustiado baseado no conceito “Tough and Sensite” (Durão e Sensível). Mesmo sofrendo com sua decisão Yee continua sendo “durão” e decide viver em sua solidão causada pelas suas escolhas e imagem que resolveu representar em uma sociedade machista.

 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
            A análise do filme “Desejo e Perigo” de Ang Lee nos possibilitou observarmos como o diretor usou da sétima arte para representar uma Xangai dos anos 40 que sofreu com a ocupação do Japão e até hoje sofre com os impactos socioculturais deixados pela guerra.
            Percebemos homens (agora sem diferença de sexos) entre o amor, o prazer, a sedução, a traição, a razão e a emoção.
            O sexo ilustra a guerra dos gêneros, homem e mulher, dos inimigos, colaboradores e resistentes.
Dessa forma, podemos concluir que Ang Lee produz uma obra histórica focada no conflito entre o que você deve fazer e algo interior que você tenta reprimir.
 
 
REFERÊNCIAS
 
Spence, Jonathan D. - Em busca da China Moderna: quatro séculos de História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SMITH, Cristiane Busato. O lugar do corpo feminino na comédia musical dos anos cinqüenta.

Xavier, Ismail. A Experiência no Cinema. Rio de Janeiro. Edições Graal: Embrafilme, 1983.


FILME:

DESEJO E PERIGO (Lust, Caution), de Ang Lee, EUA/China, 2007.

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