"A NOSSA LINGUAGEM CRIA O MUNDO."

terça-feira, 26 de novembro de 2013

ISSO NÃO É UMA MANCHETE DE JORNAL

 
            “Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides” não é uma manchete, mas poderia ser, não é a toa que vários roteiros se inspiram em noticias que passam rapidamente ao olhar do leitor que consome sangue nas páginas de jornais, considerando esses eventos distantes de suas vidas, como vemos na cena em que o estranho da classe média entra na cozinha de dona Sonia. Em uma sociedade prisioneira do medo, um jovem assassinado durante a noite não é motivo para reflexão, é motivo para a afirmação do “óbvio”: não é certo sair à noite, se estava fora de casa é porque fazia coisa errada. Gabriel Martins usa o movimento da câmera para se relacionar com o mundo, há um afastamento da câmera em relação à dona Sônia quando a história é contada, e uma aproximação ao rosto cansado e sofrido da personagem, momento este em que reconhecemos a história criada pelo cineasta.
            Uma mãe com sede de vingança é a escolha do cineasta para a sua representação do caos natural do mundo enquadrado na cozinha da dona Sônia, bagunçada por louças quebradas pelo chão e plantas pelas paredes, que certamente crescem com o desejo de vingança da protagonista. A reação de dona Sônia quebra a rotina do sofrer calado.  Daí em diante o que poderia ter sido uma nota despercebida de qualquer noticiário policial, torna-se arte pelo olhar da câmera de Gabriel Martins.
            Já sabemos que as imagens em movimento proporcionam ao cinema a oportunidade de contar as mesmas histórias de maneiras diferentes. Karim Aïnouz produziu dois filmes partindo da mesma notícia de jornal: o curta-metragem, Rifa-me e o longa mais conhecido, O Céu de Suely. A história de uma mãe que procura superar a perda de um filho assassinado, provavelmente, já foi contada muitas vezes, mas a dona Sônia habita uma tela, cujos enquadramentos lhe dão peculiaridades tão intimas fazendo com que apertemos o gatilho da arma junto com a mãe sem filho.
            A personagem dialoga conosco por meio de imagens, ela lava a louça suja, mas a água não consegue levar o sangue da tragédia, ela vê vídeos caseiros do filho e nos coloca no tempo anterior ao conflito responsável pelo desfecho. O discurso linguístico se torna desnecessário até o momento de libertação de dona Sônia em que cumpre seu destino escrito pela câmera. Livre do sentimento de vingança ela já não deve satisfações a nós, agora ela vai acertar as contas com Deus, cantando uma canção religiosa. Trata-se de um filme que não abafa os sussurros com gritos, ele não espetaculariza e sim expressa a dor.
             A mesa vazia com um vaso de flores já no inicio do filme dando a ideia de um altar pronto para receber o morto é cenário para que dona Sônia finalize seu plano de justiça, feito isso estamos prontos para deixar a história, com as saudades de cada plano que se foi...

domingo, 24 de novembro de 2013

RECOMENDA-SE NÃO CONGELAR ALIMENTOS DESCONGELADOS


 
            Eu não queria casar, a sua indireta me arrepiou, depois não sei se gostei ou me acostumei com a ideia. Quando, só por curiosidade, procurava vestidos brancos no Google você disse que queria casar com outra pessoa. Eu quis morrer, quis matar, não fiz nada. Deixei o chocolate ao lado do computador e comecei a compor músicas sobre você, que eu fingia ser música de vanguarda, usei e inventei metáforas para sempre falar do pé na bunda.

            Quando desisti dessa história de compositora você voltou, pediu desculpas e eu nem deixei você terminar, já estava chegando na sua casa. Você pegou seu coração na geladeira. Naquela noite quebramos o gelo e pela manhã você disse que era melhor colocar de novo no freezer, que ia acabar estragando por aí.

            Mais uma vez eu me meti na mesma situação, dessa vez resolvi pintar algumas telas abstratas. Não tinha mais parede para os quadros, procurei os muros e sempre era vista pelas calçadas, viam que estava perdida e me davam informações, eu sabia qual era o caminho certo que não podia voltar.  

            Quando voltei para casa e liguei a TV, você me ligou, eu tinha tirado você de mim e me sentia vazia, aceitei o convite para comer uma lasanha, cheguei na sua casa e só tinha coca-cola, tomamos em uma taça, seus amigos chegaram e você me escondeu na geladeira, fiz amizade com o pote de sorvete, ele é bonito e enquanto não acaba deixa a gente feliz. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O MEIO

 

            Eu gostei de você e se você voltasse eu ainda iria gostar, mas no meio disso tudo eu não gosto nem um pouco. Essa coisa de remendar o coração triturado é mais difícil do que andar de bicicleta, eu nunca consegui andar de bicicleta, vai ser difícil costurar o coração, também não tenho jeito com artesanato e as espetadas da agulha vão lembrar que dói.
 
            Eu lembro quando gostei de você pela primeira vez, eu já tinha te visto antes, mas de boca fechada e assim você é comum, diria que até sem graça, mas seu papo furado cola.

            Eu fiquei confusa desde quando comecei a gostar de você e não sei quando vou dizer que não gostei de você pela primeira vez. Eu acho que logo, se você não aparecer naquele deslugar e me chamar para uma conversa, eu sempre caio na sua lábia, todo mundo sabe que o seu papo convence, mesmo sendo furado.

            Sei lá se a gente se vê, mas de tanto desgosto e vou acabar dizendo que não gosto mais do seu corpo magro e esquisito que segura uma cabeça estranha, pequena e grande ao mesmo tempo, eu nunca consegui definir. 

            (Está esquisito, não importa mais se eu gosto ou desgosto, tornou-se falta de assunto, falta de temática literária, sem nada melhor para criar eu recrio você nas páginas que precisam voltar a conhecer novas histórias, isso quando eu não gostar mais de você.)

(...)